Letras e Rastros
  • Inicial
  • Escritos
  • Contato

Tietagem

9/2/2018

3 Comments

 
Minha primeira vez nos famosos Estados Unidos trouxe algumas boas surpresas. O trajeto foi em companhia de um grande amigo dos tempos de colégio, desde Ashland, em Oregon, onde ele apresentou um de seus trabalhos numa conferência, a São Francisco, na California.

Imagem
Não vou tratar dos variados insights que a viagem me acendeu. Dedicarei esse texto a um espírito de tietagem que me foi inevitável com relação a dois grandes autores da língua inglesa, que me fizeram até mesmo compreender, em sentimento, as manifestações de apreço irracional a desconhecidos (ah, então é isso que os fãs sentem!).

Um deles, quero, sobretudo, defender, como símbolo de uma apologia mais ampla da literatura. O outro quero elogiar sem medida, por sua importância em três momentos formativos da minha personalidade.
 
1. O russo.

Apaixonei-me pela pequena Ashland por variadas razões. Uma cidadezinha típica dos Estados Unidos, recheada de igrejas protestantes e de um senso de comunidade contagiante, que acolhe um festival de Shakespeare quase permanentemente. Comprovei a qualidade propagandeada das peças assistindo a Otelo - fascinante poder apreciá-la em inglês. A vocação para a arte se nota em galerias de pinturas impressionantes (achei obras de melhor qualidade e originalidade do que nas galerias de São Francisco), lojas de antiguidades, livrarias.

Imagem
Imagem
Foi uma enorme surpresa quando meu amigo mencionou o nome do autor em sua apresentação na conferência e ficamos sabendo que Vladimir Nabokov completou sua obra mais famosa, Lolita, ali mesmo, em Ashland.
Imagem
Imagem
Admiro extremadamente o estilo e a composição de Lolita, para mim um quebra-cabeças inteligente e saboroso tal como nosso Dom Casmurro, de Machado de Assis. Sei que a obra segue polêmica mesmo em dias atuais, então vou usar esse espaço somente para fazer uma apologia (que deveria ser desnecessária) a Lolita e, por tabela, à literatura em geral.

Outro dia vi uma publicação que me deixou um tanto pasmo, porque dentro de uma lista de “sintomas” de desentendimento sobre a sexualidade, um era considerar Lolita "cult". Tive que caçar para colocar aqui:
Imagem
Vamos lá, Lolita não está no topo de meus livros favoritos. Entretanto, reconheço e admiro seu brilhantismo, tanto no fluxo da história quanto na qualidade do texto em si. Se fez mais sucesso devido à polêmica de seu tema do que pela qualidade, bem, infelizmente essa é uma realidade presente em todas as artes. Mais adiante voltarei a falar sobre a diferença entre conteúdo e apreciação. Caso não houvessem roubado a Mona Lisa em 1911, ela possivelmente seria apenas mais uma obra renascentista escondida no Louvre entre tantas outras superiores em técnica e beleza.

O que me assusta, no limite da desesperança, é a falta de entendimento literário implícito na tal publicação. Infelizmente, uma ignorância que vejo até mesmo em grupos de discussões relacionados com disciplinas sociais e que não me surpreenderia encontrar até em faculdades de letras.

Tudo começa com estudos bem-intencionados que ressaltam o óbvio: obras culturais são produtos de seu autor em seu tempo – encontramos machismo por autores em seu tempo machistas, racismo por autores em seu tempo racistas, etc.

O problema é quando, diante dessa constatação, entendem ou querem entender que há obras “do bem” e “obras do mal”. A Ilíada e a Odisseia seriam obras demoníacas ante os asseclas desse culto que se interessassem em conhecê-las, e nem O Hobbit e O Senhor dos Anéis escapariam dado seu racismo imanente.

O assombro para mim é muito maior quando o status de “do mal” é atribuído a uma obra exclusivamente por seu tema. Qualquer pessoa alfabetizada que leu Lolita sabe que é a história de, nas palavras de Nabokov, um “patife vaidoso e cruel”. Um sociopata que leva sua esposa ao desespero e à morte, e se aproveita emocionalmente e sexualmente do desamparo de uma criança, danificando intensamente sua vida.
​
​Acreditar que Lolita é um manual de cultivo ao fetiche pedófilo é de uma rusticidade tão tosca quanto enxergar no Barril de Amontillado, a belíssima oportunidade que Allan Poe nos dá de sorver o que há de pior na inveja humana, um guia sobre como assassinar desafetos.

Sim, eu usei a palavra sorver. A literatura tem um evidente fator moralizante; mas não é, em si, um código moral.
​ 
Imagem
Antes de tudo, a literatura nos permite contatos. ​Com ideias que gostamos, com ideias que não gostamos, com mundos diferentes, com cabeças diferentes. Apreciaremos alguns desses mundos, nos aterrorizaremos com outros; encontraremos heróis, nos decepcionaremos com eles, veremos pessoas cometendo perversidades e acompanharemos os processos de pensamento que as levaram a cometê-las – independentemente se calculamos, depois, se teríamos agido diferente ou não.

O julgamento é opcional e exterior à obra. Embora os contos de fadas possam nos trazer o julgamento mastigado (“era uma vez uma linda e bondosa princesa”), a boa literatura geralmente nos deixará a nossas próprias intuições. Que julgamento fazer do recluso e calado Santiago, que exilou mulher e filho descuidados na Suíça? Que diferente não é deixar essa pergunta de lado e acompanhar os afetos desordenados do quase-padre Bentinho, em Dom Casmurro?

Sem mais delongas – Lolita é um exercício literário dos mais difíceis e bem-executados, alcançado graças a uma mente apaixonada por quebra-cabeças, letras e detalhes. O livro nos embarca no relato de um narrador que desde o princípio se demonstra no mínimo arrogante, e que a cada nova página nos revela sua percepção distorcida do mundo e das relações humanas, de uma maneira poética que nos confunde. Pois é, a poesia é o mais eficiente instrumento de distorção subjetiva, e não necessariamente para fins louváveis. A obra, tão bem composta, merece a admiração (ainda que não seja a predileção) de quem quer que leve a sério os esforços literários.

2. O marinheiro

São Francisco é uma das cidades mais famosas do mundo. Pelas sedes de grandes empresas de tecnologia, por suas ruas íngremes, bondes e arquitetura de bom gosto que resistem com charme às transformações do capitalismo, por sua icônica ponte vermelho-alaranjada.

Imagem
Tietagem incidental de Alfred Hitchcock (cenário da primeira tentativa de suicídio de Madeleine em Vertigo)
Imagem
Tietagem incidental de Margaret Keane, artista retratada no filme Big Eyes
 
 
​E, vizinha a ela, tem uma tal de Oakland.

Só que para quem leu o terceiro livro que mencionarei aqui, caminhar pelas docas de Oakland tem outro sentido...

Por sorte meu amigo é tão fascinado quanto eu pela obra e, ao planejar a viagem, de uma coisa tínhamos certeza: visitaríamos a estátua do Jack London nessa cidade.

Imagem
O primeiro marco do autor na minha vida não foi pela leitura, mas por um filme da Disney baseado em sua obra: Caninos Brancos, lançado em 1991. Eu tinha 8 anos; só lembro que fui assistir no cinema com meu pai e que saí de lá transformado.
Imagem
O que eu mais amava na época era fantasia, e Caninos Brancos possivelmente não teve o mesmo impacto emocional em mim que Jurassic Park, por exemplo, lançado dois anos depois. Mas havia uma diferença: em Caninos Brancos, a fantasia estava na realidade de viver, se aventurar, compreender que a natureza é amiga, inimiga e, antes de tudo, nosso espelho. Mal sabia eu que Caninos Brancos, além de me gerar uma simpatia gratuita pelo Ethan Hawke (a qual só descobri a origem porque reassisti ao trailer para escrever este texto), me prepararia para o que viria depois - o ponto de virada da minha vida adulta.

Eu tinha já meus quase 20 anos, mas mantinha algumas idealizações adolescentes. Não apenas sobre funcionamento político do mundo, mas tantas outras coisas que uma mente jovem pode decidir se iludir que fica até difícil listar. Andava lendo muito, especialmente os russos. Encontrava em Tolstoi um entendimento preciso sobre a alma que procura o “bem viver” diante da morte inevitável, servindo a sua comunidade e buscando irrestritamente o amor, a energia basilar da continuidade da vida. Acreditava que eram ideais não apenas espalháveis, como inevitáveis.

Por que diabos decidi comprar, numa feira de livros usados no Largo do Machado, O Chamado da Selva? (Um encontro fortuito que não consigo crer que ainda pode ocorrer ante o domínio das livrarias comerciais, mas esse é tópico para outro momento.)
 
Imagem
O fato é que o livro (também já traduzido como O Apelo da Selva, O Chamado Selvagem, O Grito da Selva, e, um pouco equivocadamente, O Chamado da Floresta) mudou minha vida. Não que eu tenha me entregado totalmente ao spencerismo embutido na obra; nunca abandonei muitos de meus ideais tolstoianos. Mas quando você não é um príncipe russo, a jornada de Buck faz muito mais sentido. Ali estava o viver em todas as suas contradições. Os jogos inevitáveis de poder, a escassez de recursos que leva à acumulação de recursos, o servilismo tão obrigatório à sobrevivência quanto o arreganhar dos dentes.

O final elevou minha alma de forma quase religiosa – mas foi todo o caminho que me ensinou a enfrentar a fase adulta. Se antes havia alguma ilusão cultivada de que há destinos escritos pelas estrelas, inevitabilidades de sucesso no amor, no trabalho, na vida em sociedade, a selva me chamou para contar que nós escrevemos nossos destinos com o pulsar de nosso sangue.

Imagem
Mais dez anos se passaram. Martin Eden parecia uma história romântica de um marinheiro apaixonado. Eis que avançamos um pouco mais e encontramos uma trajetória complexa, ao mesmo tempo sensível e detalhada, de um homem sem berço ganhando o mundo. Ganhando? O realismo de London nos joga para lá e para cá como se num bote em tempestade. O mundo não se ganha, o mundo é o que é. A recompensa do trabalho industrioso não vem como fruto dele, pode, de fato, nunca vir. Os interesses que servem às trocas econômicas e sociais são rasos, medíocres.

Há pouco tempo, acompanhei uma polêmica: fizeram uma campanha para indicar uma escritora negra, Conceição Evaristo, para a Academia Brasileira de Letras. Levou o título o cineasta Cacá Diegues, gerando consternação e revolta para os que almejavam ver uma nova representatividade na instituição. O Martin Eden dentro de mim, olhando para o mar através de uma escotilha aberta, sorri, com certo escárnio desesperado. Conceição Evaristo. Cacá Diegues. Academia Brasileira de Letras. Cadeira Número 7. Conceitos vazios, que nada tem a ver com a vida, com a natureza, com a arte. Com o que escreveu Conceição em noites que varou a madrugada, ou com os dias mal alimentados que Cacá não podia perder uma luz natural para sua filmagem.

Entretanto, justamente ao notar que são todos vazios, se tornam também mais possíveis. Sim, é possível obter conquistas materiais e reconhecimentos sociais partindo bem atrás na linha de largada; é possível lidar com o sabor amargo dos símbolos e ficções inúteis quando toda a beleza já existia sem que se prestassem a apreciá-la.

Essa talvez a grande lição que extraímos de Martin Eden. A produção está apenas marginalmente vinculada aos resultados externos; os dois se manejam separadamente. Ao resultado material e reconhecimento social, nos dedicamos pelo quanto desejamos ou precisamos, aceitando suas aleatoriedades e caprichos. Ao viver dia após dia e à produção, estes sim, podemos dedicar, independentemente, nossa alma.

3 Comments

Esse Obscuro Sujeito do Desejo - Natalie Portman

5/20/2018

1 Comment

 
Ao recomendar para minha família o brilhante argumento da Natalie Portman sobre os recentes movimentos de Hollywood contra o assédio, que se alastrou para outras indústrias (especialmente no entretenimento), mas que foi criticado por alguns como excessiva caça às bruxas ou puritanismo anacrônico, não pude encontrar uma versão em português. Pior, encontrei apenas matérias que pinçaram os relatos de sentimento de assédio como se o texto se limitasse a revelações de uma nova vítima. Por ser a autonomia humana um tema de meu maior interesse, o qual rege, para lá ou para cá, minhas opiniões políticas, me vi impelido a apresentar uma versão em português. Se eu ou esse espaço é o mais apto para esse esforço, não sei. Deixo a tradução livre para reprodução, recomendando sempre manter o link para o original da Portman. 
​

Imagem

ESSE OBSCURO SUJEITO DO DESEJO
​NATALIE PORTMAN

​https://medium.com/@natalieportman/that-obscure-subject-of-desire-f2e2bd09db8c

Vamos falar sobre prazer. Eu sigo escutando uma queixa específica sobre esse deslocamento cultural, e talvez você tenha escutado também. Algumas pessoas têm chamado esse movimento de puritano ou um retorno a valores vitorianos, em que os homens não podem se comportar ou falar sexualmente em torno de mulheres graciosas, delicadas e frágeis. Para essas pessoas eu quero dizer:

O sistema atual é puritano. Talvez os homens possam dizer e fazer o que queiram, mas as mulheres não. O sistema atual inibe mulheres de expressar nossos desejos, vontades e necessidades, de buscar nosso prazer. Permita-me contar minha própria experiência:
 
Eu fiz 12 anos no set do meu primeiro filme, O Profissional, no qual eu interpretei uma jovem que faz amizade com um assassino de aluguel e espera vingar a execução de sua família por um agente corrupto da Divisão Anti-Drogas da Polícia. A personagem está simultaneamente descobrindo e desenvolvendo sua feminilidade, seu desejo e sua voz. Naquele momento da minha vida, eu, também, estava descobrindo minha própria feminilidade, meu próprio desejo e minha própria voz.

Eu estava muito animada, aos 13 anos, quando o filme foi lançado e meu trabalho e minha arte receberiam uma resposta humana. Eu abri entusiasmadamente minha primeira carta de fã, para ler uma fantasia de estupro que um homem tinha escrito para mim. Uma contagem regressiva começou no programa da rádio local para o meu aniversário de 18 anos, eufemisticamente a data em que eu estaria lícita para dormirem comigo. Revisores de filmes falaram sobre os meus “seios brotando” em suas críticas. Compreendi muito cedo, mesmo aos 13 anos, que se eu fosse me expressar sexualmente, me sentiria insegura, e que homens se sentiriam aptos a discutir e objetificar meu corpo, para meu enorme desconforto.

Eu rapidamente ajustei meu comportamento. Rejeitei qualquer papel que tivesse até mesmo uma cena de beijo, e falei deliberadamente sobre essa escolha em entrevistas. Enfatizei minha seriedade e dedicação aos livros, e cultivei um modo de me vestir em público que era estereotipicamente "elegante e refinado". Construí uma reputação por ser basicamente pudica, conservadora, nerd e séria - numa tentativa de sentir que meu corpo estava seguro e minha voz seria escutada.

Aos 13 anos, a mensagem da nossa cultura estava clara para mim. Senti a necessidade de cobrir meu corpo e de inibir minha expressão e meu trabalho, para enviar minha mensagem ao mundo de que eu era alguém digna de segurança e respeito. A resposta à minha expressão -- de pequenos comentários sobre meu corpo a declarações mais ameaçadoras e deliberadas -- serviu para controlar meu comportamento, através de um ambiente de terrorismo sexual -- onde até uma mulher que não está diretamente sujeita a agressão se sente ameaçada pelo ambiente de violência a inibir seu comportamento.

Um mundo em que eu pudesse vestir o que quisesse, dizer o que quisesse e expressar meu desejo como quisesse, sem temer pela minha segurança física ou reputação -- esse seria o mundo no qual o desejo e a sexualidade feminina poderiam ter sua expressão e satisfação mais ampla. Esse mundo que queremos construir, e é o oposto de puritano.

Uma das minhas amigas da escola costumava brincar: “às vezes é mais fácil apenas beijar o cara do que explicar para ele por que você não quer.” Todas ríamos, mas a mensagem era clara -- estávamos mais preocupadas sobre ofender o cara, ou ser desconfortável com ele, ou ferir seus sentimentos, do que fazer o que queríamos fazer.

Como meninas, fomos socializadas para passar nosso tempo nos fazendo parecer atraentes para os garotos -- nossos cabelos, nossa maquiagem, nossos corpos. Aprendemos nossos melhores ângulos para eles, as coisas que eles gostavam que falássemos -- e as coisas que não. Éramos capazes de nos ver através de seus olhos e ditar nosso comportamento de acordo com o jeito que eles queriam que tivéssemos. E isso nos fez, às vezes, esquecer de perguntar o que nós mesmas queríamos. E muitas vezes nos fez incapazes de até mesmo saber o que nós mesmas queríamos, porque estávamos tão aprisionadas pelos pensamentos sobre o que eles queriam.

Bem, vamos fazer nosso novo mundo não sobre nós e eles, sobre a nós ou a eles. Considerar o que outra pessoa deseja não é ruim. Na verdade, é uma forma de empatia. A consideração só precisa ser recíproca, e não às custas do desejo de uma das pessoas.

Então eu queria propor uma maneira de continuar movendo essa revolução adiante: Vamos declarar alto e claro: Isso é o que eu quero. Isto é o que eu preciso. Isso é o que eu desejo. É assim que você pode me ajudar a atingir prazer.

Para as pessoas de todos os gêneros aqui conosco hoje, vamos encontrar um espaço em que nós, mutuamente e consensualmente, cuidemos do prazer um do outro, e permitamos que a vasta, ilimitada gama de desejos possa ser expressada.
​
Façamos uma revolução do desejo.
1 Comment

Aparte: A Forma da Água

3/22/2018

0 Comments

 
Decidi fazer um aparte na rotina para escrever uma apologia apaixonada ao filme "A Forma da Água", que assisti no último domingo.

Precisa de alguma defesa um filme que ganhou o prêmio mais reconhecido no cinema? Depois de ler ou escutar o quarto ou quinto amigo comentando que não impressionou, entendo que sim. Não por querer bradar “ vocês não entenderam, deixa eu explicar!”. Nada disso. Acho que todo mundo “entendeu” o filme; e se há algo ali difícil de entender, então eu mesmo deixei escapar. O que quero é compartilhar minhas reflexões sobre a importância dos elementos evidentes, chamar a atenção para as belezas da luz da vela, ainda que todos já saibam como ela é. 
Imagem
Antes, alguns alertas:
  1. Pretendo escrever bastante livre e prolixo. Vai ficar longo, complexo e desorganizado.
  2. Decidi não ler nenhuma outra crítica ou comentário ao filme, muito menos "o que o diretor realmente quis apresentar". O que vai sair aqui é da minha cabeça como espectador e admirador. Claro que, numa boa ciência, isso seria um atestado de mediocridade. Deixarei escapar elementos fundamentais da obra e inserirei outros equivocados ou desimportantes. Mas ora, se eu, assim, gostei do filme, quem sabe essa visão turvada não ajude outros a apreciá-lo? Fora que, entre divagações e ciência, estamos aqui nas trincheiras das primeiras.
  3. Escreverei com "spoilers" a dar com o pau. Ou seja, se não assistiu ao filme, por favor pare por aqui.

Introdução: fantasias compensatórias.

Houve um tempo que inventávamos deuses curiosamente parecidos com nossos pais. A deusa que nutre, o deus que castiga. (Sim, estou começando no início da “História” – eu avisei que seria longo.) Bom, nesses tempos, não nos perguntávamos “por que” estávamos produzindo essas fantasias. Elas fluíam como compensação inconsciente de nossos medos e desejos, tão naturalmente que há quem defenda a existência de Deus com base na onipresença de entes fantásticos no imaginário de diferentes povos.
​
​Só muito tempo depois, após o surgimento da filosofia, é que alguém deve ter cogitado que o gordinho fazia esculturas de Hércules porque talvez desejasse possuir aquela força. Não vou me aprofundar muito na história das fantasias compensatórias, porque o tema exige pesquisa. Decerto as transformações nas fantasias religiosas tiveram grande impacto. “Os humilhados serão exaltados” é uma clássica compensação fantasiosa da impotência, sofisticada com abstração.
Imagem
Voltemos ao reino da não abstração, da compensação inconsciente da fantasia. No século XVII foi publicada a história, que já circulava na tradição oral, da menina escravizada pela madrasta, que dormia às cinzas, mas que tem a oportunidade de participar de um baile esplendoroso, dançar com o príncipe e, depois de ter a nobreza reconhecida em seus pés, casar-se com ele. Detalhe: Cinderela tem milhares de variações através dos tempos e das regiões, uma delas na Grécia em 7 a.C.
Imagem

​Cinema

​
O cinema nasceu ao lado das fantasias - e suas inevitáveis compensações. Analisado friamente, o primeiro grande longa-metragem de animação da história nos contou sobre uma menina que consegue um namorado nobre apesar das restrições da mãe (madrasta) que se enche de inveja depois que a menina cresceu e se tornou mais sexualmente atrativa do que ela. Sete anões são o elemento mágico ansiado para ajudar a sonhadora a vencer sua impotência, tal como a fada madrinha.
Imagem

​O mesmo início do século XX conheceu ainda, nos quadrinhos, o alienígena superpoderoso que salva o planeta de todo o mal (e também protege uma bela jornalista que se encanta por ele, claro); nas revistas “pulp”, todo tipo de aventura heroica, aterrorizante ou amorosa.
Imagem
Imagem
Estou algumas gerações adiantado para que tivesse a oportunidade de viver os tempos de assistir a King Kong no cinema, o amor impossível de uma fera adorada como um deus (opa) por uma celebrada atriz.
Imagem
Entretanto, obviamente, encontrei nos filmes boas doses de fantasia para compensar desejos do mundo real. Validação, importância, realização, amor. Meus valores apareciam na tela como sendo os valores do mocinho, que através deles subjugava os bullys do mundo. ​

​Dentre elas, vale mencionar A História Sem Fim (1984). Esse filme trabalha com uma tradição já vista em Alice no País das Maravilhas (1865 – o livro), que é a autodeclaração da fantasia. Em Alice, a forma do elemento onírico é que se sobressai – ou seja, o que aparece é a maneira que a linguagem é transformada em imagens e experiências pelos sonhos (mais do que explorar “de onde vieram” essas palavras, como faria Freud 35 anos depois). Alice é desligada, imaginativa e sonha. A história é uma fantasia sonhada.

Imagem
​Em A História Sem Fim, adicionalmente o caráter compensatório da fantasia também é declarado. O filme começa com um menino sofrendo duros golpes da realidade, até que encontra, num livro, um universo mágico passando por um perigo e a proteção desse universo por um valente herói se torna sua prioridade. Visto de longe, não é uma história fantástica em si; é uma história realista sobre o poder da fantasia.
​
Diagese, Subjetividade, Fantasias

Toda obra de ficção nos conduz a uma viagem a pelo menos três camadas de existência. Uma é nossa experiência real, ou seja, deitados no sofá, acomodados numa poltrona, comendo pipoca, escutando o som dos carros na rua. Outra é nossa experiência interior, subjetiva. Medos, anseios, emoções misturadas que o filme faz com nossa cabeça já pré-configurada por passadas experiências. E a terceira, é claro, é o universo que acontece dentro da ficção – que chamamos de diagese. Forrest Gump (1994), por exemplo, sentado num banco contando suas histórias.

Em a História Sem Fim, concedendo uma interpretação minimamente adulta e sem considerar as sequências, a diagese é a de um menino “viajando” num livro. Então o universo fantasioso que ele encontra no livro já seria uma “quarta camada”; assim como o País das Maravilhas, dentro da simples história de uma menina que cochilou no bosque.

Nem todos gostam dos filmes de David Lynch, mas eles nos oferecem aulas de “camadas diagéticas”, se posso colocar assim. Depois de A Estrada Perdida (1997), o último dele que vi, nunca mais se consegue assistir a um filme da mesma maneira. 
Imagem

​Nesse filme, acompanhamos a história de um músico bitolado que comete um feminicídio típico, por sensações de impotência que o levam a uma crise psicótica de ciúmes. Mas a maneira que acompanhamos essa história é tão confusa quanto a cabeça dele – lampejos de memórias misturados com imaginação, todos contaminados por seus medos e desejos. É uma bagunça. 
Imagem
E não acaba aí. Subitamente o filme se transforma na história de um garoto que passou por alguma noite sombria da qual não se recorda (seus pais que falam da noite misteriosa). Tirando algumas estranhezas, o menino vive bem sua vida de mecânico. Sexualmente, “apanha mais buceta que um banheiro público”, nas palavras de dois policiais que o seguem para toda parte. Ou seja, a “história transformada” é uma fantasia compensatória complexa do músico feminicida, misturando potência sexual, uma noite sombria deixada para trás, medo da polícia, externalização das ameaças... Só vendo o filme para entender a bagunça perfeitamente organizada que nos permite captar somente relances do que seria a diagese primária (o que "realmente" aconteceu), inapreensível diante de tantas camadas fantasiosas.

Meu Vizinho Totoro

Não sei se todos os fãs do clássico de animação japonesa Meu Vizinho Totoro (1988) se dão conta que uma das grandes belezas do filme é que ele é extremamente realista. Só que diferente de Alice ou de A História Sem Fim, as rupturas entre realidade e fantasia não são didáticas. A fantasia compensatória ocorre ali, normalmente, enquanto a trama real externa se desenrola.
Imagem
Onde vimos isso? Del Toro não está alheio à influência do bicho que rima com seu nome e com sua compleição – O Labirinto do Fauno (2006) joga, mais adulto, o mesmo jogo.
Imagem
Há algo de extremamente brilhante em Meu Vizinho Totoro, pois além de tudo a fantasia é questionada e depois reafirmada. Ao assistir o filme, ficamos sempre com essa dúvida insana: “Ah, é só uma fantasia. Ah não, é real, sim. Mas o que eu estou pensando, como um ônibus-gato pode ser real? Ah, mas é.”

​Como nos filmes de milagre de Natal, sabemos que quando a criança crescer, a fantasia, que “de fato” era real, deixará de ser.

A Forma da Água

Chegamos. A Forma da Água tem uma trama aparentemente simples, bela por si só. Personagens usualmente considerados “fracos” na sociedade (muda-orfã, gay, negra) participam de uma aventura fantástica contra homens brancos maus e poderosos, com direito a um romance King-Kongiano da protagonista com uma criatura-deus amazônica.

Somente por isso, a história já merece aplausos. Voltarei nesse ponto mais adiante.

​Porém há algo mais interessante aí. Temos duas sequências da rotina de Elisa que parecem desenhar para nós seu universo diagético primário (a camada “real” da história): ela cozinha ovos, se masturba na banheira, frequenta um cinema em baixo de seu apartamento graças à generosidade (superficial/paternalista) do senhorio. Tem dificuldade de se expressar não somente porque é muda, mas porque sente que o mundo à sua volta é avesso à linguagem das coisas belas. Vive mais imaginando através de gotas de chuva na janela do ônibus que no contato com as pessoas. 
Imagem
Sem aviso, a fantasia compensatória invade a realidade diagética. Ela trabalha com limpeza, mas num laboratório ultrassecreto que abriga uma criatura saída de um filme antigo. Com a criatura, ela consegue “se expressar”. Ele vive na água, o mesmo ambiente de suas solitárias experiências sexuais, e se encanta por seus ovos cozidos.

Mas não nos enganemos, porque agora vem o duplo-giro! A história, que nos é contada pelo colega dela (que poderia ser qualquer contador de histórias), é real: com o laboratório, com a criatura, com as cicatrizes de órfã abusada na infância sendo na verdade guelras. Nada no decorrer no filme nos leva a escapar da fantasia como parte do universo diagético primário (o  que seria "o mundo real"). O filme é, de fato, a história da muda que salva a criatura e tem um romance com ela.

Ora, todos os elementos nos levam a perceber que trata-se de uma compensação fantasiosa da dura realidade; ao mesmo tempo, nenhum elemento dá minimamente a entender que não se trata de um universo completo em si mesmo. Ou seja, ao mesmo tempo que assume sua natureza de fantasia ingenuamente compensatória, o filme reivindica a integralidade da fantasia, o espaço que originalmente ocupava o cinema na vida de tantos escapistas.

Temos, então, um verdadeiro conto de fadas, perfeitamente adaptado aos nossos tempos céticos e esclarecidos: diferente de Cinderella, ele nos fornece pistas suficientes para reconhecer desde o princípio a "realidade" difícil que lhe dá origem. Porém, estruturado suficientemente como um conto de fadas para manter o espírito de fantasia integral.

​A cena que Elisa está sentada à mesa com a criatura e os imagina dançando é de pirar: tem um maldito monstro amazônico sentado à mesa de uma história que, fora isso, seria seriíssima e digna de compaixão; e a “fantasia” é dançar com ele? O filme parece rir conosco. Ninguém acorda num bosque no final da história. Tudo é “real”. 
Imagem
E que tipo de conto de fadas seria esse? Inevitável evocar a Bela e a Fera. Uma moça que “não consegue se comunicar” com seus concidadãos e encontra uma fera nobre que lhe fornece esse alento, ao enfrentar um homem cheio de si, símbolo da impermeabilidade mental.

A Bela e a Fera dançam, para que não transem e traumatizem sua audiência mirim; a criatura e Elisa transam (no banheiro das fantasias masturbatórias, diga-se de passagem), e a dança é a fantasia que encobre a relação. Tudo em A Forma da Água é mais cético, mais declarado, esclarecido – sem, contudo, virar um filme cabeça do David Lynch; permanecendo, impecavelmente, um conto de fadas.

​Aqui entram os méritos da direção. Como trabalhar tantos elementos misturados com essa coesão? Como colocar uma porta de banheiro se abrindo, a água escorrendo porque uma mulher estava amando uma criatura marinha lá dentro, totalmente submersa, e tudo fazer sentido na narrativa aventureira que nos está sendo transmitida? 
Imagem
A “Bela” Elisa, em A Forma da Água, nos comove mais que a francesa brilhantezinha da Disney. No nosso jogo de poder, Elisa provavelmente não lerá “A Força do Pensamento Positivo” ou galgará cargos. Está condenada à sua vivência “menor” (para os que pensam como o vilão), assim como seu colega. Pessoas de alma sensível, artística, que frequentam o mundo como estrangeiros e encontram seu lar nos filmes, livros e videogames.

A Forma da Água oferece o mesmo consolo dos filmes que Elisa assistia em baixo de sua casa. Uma aventura impossível com jogos de espionagem, um romance com uma criatura que realmente a entende por não ter se vestido com jogos de hipocrisia. A diferença é que o consolo vem costurado na realidade consolada – vivemos num mundo racista, opressor, sob um sistema insano que distribui recursos desproporcionalmente para pessoas que sabem falar a língua mecânica do “eu entrego”. 

Assim como os filmes de Natal nos alertam sobre a morte da “criança interior”, A Forma da Água é um filme sério e triste sobre a “morte” inevitável dos sensíveis em tempos de odes imbecilizadas ao individualismo e à prosperidade para os “fortes”. Ao mesmo tempo, oferece um resgate da fantasia para esses mesmos sensíveis que vinham empedernindo através dos anos.

Quando as cicatrizes viram guelras, inevitável sorrir. Principalmente por dentro.
Imagem
0 Comments

Galápagos, Subjetividade, Lynch

2/17/2018

2 Comments

 
Se tento enxergar longe, é por escalar, vagarosamente, ombros de gigantes. 
​ 
Darwin Sán Cristóbal
Busto de Charles Darwin, Porto Baquerizo Moreno, São Cristóvão, Galápagos
​Nesse breve lapso de existir, já tive a oportunidade de cruzar as pedras em que Sócrates, recostado, enchia o saco dos atenienses sobre suas (in)certezas, e trilhar os passos em que seu pupilo inspirado percebeu a absoluta subjetividade do que cremos verdade. Flanei à beira do rio que acolheu Descartes enquanto tentava encontrar filetes de certeza que pudessem embasar a realidade objetiva. Vasculhei a casa em que o mago de Viena investigou os mecanismos do desejo que distorcem percepções e ações dada nossa natureza animal.

​Pera -- natureza animal?
​

Antes, certo senhor sistematizou a descoberta que provavelmente ainda é a mais importante na lógica da realidade. Arrependido por não ter tocado ainda seus diários de viagem, mas contente por ter ao menos lido mais da metade do "Origem..." e umas tantas páginas do "Descendência...", estive onde Darwin perdeu as botas.
​ 
Praia Escondida, Santa Cruz, Galápagos
Praia Escondida, Santa Cruz, Galápagos
Ilhote As Tintureiras, Galápagos
Ilhote As Tintureiras, Galápagos
 
​​Ele ficou apenas pouco mais de um mês em Galápagos. Mas ao coletar e observar diferentes espécies de aves entre as ilhas do arquipélago, especulou que elas migravam entre as ilhas, porém só sobreviviam em cada ilha aqueles indivíduos com os traços melhor adaptados. Assim como o homem “forçava” a prole de melhores cavalos ao reproduzir somente aqueles com os traços mais desejáveis, a natureza “forçava” a permanência de indivíduos melhor adaptados à complexidade do ambiente – e essa permanência desenvolvia as diferentes espécies.
​ 
Galapagos Mockinbird
Acredito que seja um "mockingbird" de Galápagos, uma das primeiras espécies cuja variação chamou a atenção de Darwin. Só bati a foto porque ele fazia um barulhão.

​A lógica demoliu séculos de especulação filosófica. Nas palavras do gênio: 
​ 
"​Todos estes efeitos, como veremos de maneira mais completa no capítulo seguinte, derivam inevitavelmente da luta pela vida. Devido a esta luta pela vida, qualquer variação, por mais sutil e independente da causa da qual provenha, se for em qualquer medida benéfica a um indivíduo de qualquer espécie, nas suas relações infinitamente complexas com outros seres orgânicos e com a natureza externa, tenderá à preservação daquele indivíduo, e geralmente será herdada por sua prole. Os descendentes terão também melhores chances de sobrevivência, pois, dos muitos indivíduos de uma espécie que nascem periodicamente, apenas um pequeno número pode sobreviver. Nomeei este princípio, em virtude do qual cada sutil variação, se útil, é preservada, com o termo Seleção Natural, para demarcar sua relação com a que o poder do homem de selecionar. Vimos que o homem, por seleção, pode certamente produzir grandes resultados, e pode adaptar seres orgânicos a seus próprios usos, através da acumulação de leves porém úteis variações, dadas a ele pelas mãos da Natureza. Mas a Seleção Natural, como veremos adiante, é um poder incessantemente pronto para ação, e tão imensuravelmente superior aos débeis esforços do homem como as obras da Natureza estão para as da Arte."
​  
Sobre a Origem da Subjetividade por meio de Seleção Natural
  
​​Muito mais que descobrir que espécies descendem umas das outras, Darwin explicou o processo pelo qual isso ocorre. Talvez nem o próprio naturalista tivesse ideia do impacto de sua sistematização, nas ciências que lhe seguiriam. Do tamanho dos rombos que ele deixou nas muralhas entre natureza e cultura.
Túnel de Lava, Santa Cruz, Galápagos
Túnel de Lava, Santa Cruz, Galápagos
O fato de enxergarmos somente as sombras da caverna de Platão, subitamente, pôde ser entendido como um traço adaptativo, tal como as penas de uma galinha. As fantasias que, segundo os caminhos abertos por Freud, possibilitaram que nos puséssemos de pé e tocássemos flautas, foram variações fundamentais para o desenvolvimento e permanência dessa nova espécie esquisitíssima, a única que compreende que vai morrer assim como todos os que ama, a única capaz de refletir sobre a destrutividade inerente a seus instintos de agredir, devorar e copular.
​
Somente vestindo fantasias podemos acender velas e desejar muitos anos de vida a quem amamos; podemos subjugar outros de nossa espécie em esportes ou jogos de poder profissional; compramos ingredientes orgânicos e uma garrafa de vinho para fazer um risoto; escrevemos poesias sobre a tal beleza do tal amor.
​  
Seleção Sexual, Estética e Desejo
 
Mas a teoria da seleção natural teve que enfrentar um paradoxo desde seus primórdios. Se a luta (inconsciente) pela sobrevivência rege os traços preservados de cada indivíduo, por que o pavão (como exemplo) evoluiu para se tornar tão gracioso, tornando-o uma presa tão mais fácil a seus predadores? Levando o problema para a estética humana, por que a protagonista de Cisne Negro... se comporta como a protagonista de Cisne Negro?
Cisne Negro
Espécie que prospera aparentemente fora da lógica da seleção natural.
Uma hipótese interessante é a de que apenas os primeiros traços sutis de alguma forma significavam melhor adaptabilidade. Um pavão com uma cauda um pouco maior ou um pouco mais colorida era selecionado porque gerava prole com mais saúde física, por exemplo. Porém, não somente os genes da cauda são passados adiante, mas também os genes de atração pela cauda. Os genes de atração garantiam que as proles selecionariam sexualmente os pares mais saudáveis. Só que uma vez que ambos conjuntos de genes são passados às proles, o sistema de atração e perpetuação “roda sozinho”, ou seja, não precisa mais estar vinculado à sobrevivência dos indivíduos em si. Logicamente, também não podem impedir a sobrevivência, e por isso não prosperam pavões com cauda tão grande que não possam caminhar. Dadas as mínimas condições de sobrevivência, os genes de atração e exageros de atratividade (que podemos passar a chamar de "estéticos") se ajudam mutuamente a se proliferar.
 
Patola-de-pés-azuis, Santa Cruz, Galápagos
Patola-de-pés-azuis, Santa Cruz, Galápagos
Sapatos Azuis
Essa foto não é de Galápagos, os sapatos azuis são só para gerar reflexão mesmo.
 
As variações que passamos adiante (genes) não definem completamente nosso comportamento, mas nossas ações estão confinadas aos limites das capacidades de nossos genes. É possível manobrar, porém desde que dentro da estrada que o gene já definiu. Por essa razão uma vida dedicada à beleza, como por exemplo a de Van Gogh, que não ajudou nem na sua sobrevivência nem na geração de prole, ainda assim pode ser explicada no contexto da seleção natural, pois a dedicação à estética é um dos caminhos abertos por nossos genes de atração.
 
​Esses sistemas que rodam independentemente de ganhos para a sobrevivência são cruciais para entender a humanidade. Definem grande parte de nossa existência e se estendem para a composição complexa daquilo que chamamos de cultura. Por essa razão nossos cérebros evoluíram muito além do requerido para vencermos os neandertais, aprendemos a valorizar comportamentos autodestrutivos como o de muitos santos, e seguimos evoluindo culturalmente na direção... Na direção...
​  
Retorno à fantasia
  
​Fico tentado a falar de como a percepção de que a lógica fria da natureza não quer nada conosco pode levar a atitudes opostas como o existencialismo tanto-faz ou o desejo de colonizar outros planetas, este último como se a sobrevivência eterna de nossa espécie (ou das que descenderão de nós) fosse um chamado cósmico, uma vocação.

Só que a ideia aqui é falar de Galápagos e subjetividade, e já me perdi bastante. Voltemos.

David Lynch é um cineasta Hollywoodiano, um tanto odiado por sua adaptação de Duna. Bem, eu não li o livro, então até que gostei. Ele é famoso pelo brilhante Veludo Azul, que já traz alguns elementos que ele exagerou em outros filmes como Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos. O que vemos na tela, muito mais que a tentativa de reprodução filmada de uma história observável na vida real, são memórias contaminadas por fantasias; olhares sobre o mundo contaminados por fantasias; puro entretenimento mental de fantasias.
​ 
Veludo Azul
Veludo Azul, 1986
Cidade dos Sonhos
Cidade dos Sonhos, 2001
 
​Tolices, se poderia pensar. Mas não é a nossa experiência humana permeada por esse tipo de tolice? Não tomamos banho às vezes imaginando uma conversa que jamais acontecerá? Não brincamos de adulterar as memórias que temos de certos eventos, colocando imagens e sensações sobre “o que aconteceria se eu tivesse feito isso ou aquilo”? Não planejamos festas em parte com listas e em parte com ilusões sobre como ela se desenrolará?
​

Uma viagem a Galápagos nunca é somente uma viagem. O que nos move adiante e nos faz juntar dinheiro para uma viagem, um carro ou uma casa de campo são fantasias confusas sobre o que o futuro pode ser e o que pode significar para nós, assim como nos apegamos seletivamente a elementos do passado que ajudam a construir a narrativa de nossa vida. ​
​ 
Porto Ayora, Santa Cruz, Galápagos
Porto Ayora, Santa Cruz, Galápagos
  
​​Para um exemplo mais prático: vejo muito pela internet a frase do Robin Williams:
Eu pensava que a pior coisa na vida era acabar sozinho. Não é. A pior coisa na vida é acabar com pessoas que fazem você se sentir sozinho.
  
​Não sei se quem a reproduz percebe que essa é uma narrativa pessoal e subjetiva de um homem doente – que terminou por tirar a própria vida.

E outros muitos artistas famosos perdem o gosto pela vida quando a fantasia confusa sobre um futuro desejável se torna um dia-a-dia inescapável. A intoxicação se torna a melhor – ou única – saída percebida para seguir existindo. É perigosa a combinação entre narrativas negativas sobre o passado e ausência de novas fantasias para o futuro.
​
Da mesma forma, também entretemos narrativas e fantasias coletivas. A realidade da espécie humana é fundamentada em ficções adaptativas como família, propriedade, ética, utopias, etc.
​  
Azuis
​
Eu cultivo um duplo interesse nessas questões de subjetividade: primeiro, estudar e trabalhar para transformar certas narrativas coletivas de nossos sistemas políticos e econômicos. Não tenho especial preocupação com a sobrevivência da espécie humana, mas sim que os indivíduos existentes ou por existir estejam menos constritos por forças indesejadas.

Em segundo lugar, contemplar minhas próprias fantasias individuais ou aprender com fantasias alheias. Há quem goste de viver as fantasias sem observá-las, há quem goste de esmiuçá-las; a grande ilusão é pensar que se pode viver sem elas.

Deixei Galápagos com um delineamento de um conto Lynchiano, título provisório “Azuis”. No que eu conheci de Lynch, o escape para a fantasia tem como gatilho eventos supertraumáticos; minha ideia é trabalhar as fantasias em situações mais prosaicas.
​
Claro que, me conhecendo, escreverei tão rápido quanto as tartarugas gigantes atrás de seu café da manhã...
 
​Se gostar do resultado, no mínimo ganhei um novo hobby de buscar elementos oníricos nas minhas viagens. Para que mesmo? Ah, sim, o sistema roda sozinho.   
2 Comments

Um rio mais a atravessar

12/8/2017

0 Comments

 
Segui o Danúbio de Viena (Áustria) a Budapeste (Hungria), e então suas proximidades em Bucareste (Romênia). Realizando sonho antigo, viajei de trem nos trajetos entre as cidades. 

Parque Freud Viena
Parque Sigmund Freud, Viena


​Viena

​Em Viena, relembrei o prazer que extraio de estímulos intelectuais e artísticos. Inspirei-me com os estudos e produção intelectual incansável do Freud no museu instaurado na casa dele. No dia seguinte, perdi, contente, quase todo meu tempo restante no majestoso Museu de História da Arte. 
​
Museu Freud
Charutos e produção. Museu Freud, Viena.
Museu de História da Arte de Viena
Museu de História da Arte, Viena.

​​Existe um conceito interessante em nossos tempos loucos chamado Fear of Missing Out (Medo de Ficar por Fora). Ele corresponde à ansiedade de não preencher a vida com o que se deveria, em comparação com experiências aparentemente recompensadoras de outras pessoas. Pode ser a ansiedade de ter que visitar um evento que todos estão falando (ex. Rock in Rio), tirar uma foto engraçada num local em que todos tiram, estar atento e participando das redes sociais com a mesma frequência que os amigos, etc. Recentemente li um texto que falava, em oposição, de Joy of Missing Out (Alegria de Ficar por Fora), mas deixemos esse para outro dia. 
​
​O interessante para mim foi perceber que estava tão feliz em meio às obras do Museu de História da Arte, que a atração planejada para metade de um dia consumiu um dia inteiro com prazer. 
​
Santa Giustina e un devoto – Moretto da Brescia
Santa Justina e um devoto, Moretto da Brescia.
Imagem
A queda dos anjos rebeldes, Luca Giordano.

​“Busque o que gosta através de múltiplas fontes”, me comentou um amigo, sobre um texto budista que não recordava bem qual, “porém uma vez que encontre, agarre — já não precisa seguir procurando mais”. Não nos basta encontrar alegrias; cismamos que outras superiores estão escondidas em algum lugar, nos esperando. Gratidão — a fórmula básica de todas as boas pregações espirituais.

​Não conheci muito de Viena. Agora, já o Museu de História da Arte...!
​​
Arte da Pintura - Veermer
A Arte da Pintura, Johannes Vermeer.


​Budapeste

​Budapeste é uma cidade encantadora. Apaixonei-me tão logo desci do trem. Há cidades que transpiram suas belezas tão sutilmente que elas parecem nos alcançar pelo ar. Estão na combinação quase imperceptível de árvores depenadas diante de edifícios baixos e ocreados, que sussurram “aqui há história”. 
​
Budapeste
Budapeste.
Hostal Budapeste
Escada do albergue, Budapeste.

​Também lá me afoguei em museus, mas Budapeste me ofereceu ainda uma marca de vida diferente. Havia uma ponte que cruzava o Danúbio, de Peste, onde me hospedei, a Buda, a cidade ocupada pelos otomanos e que floresceu com outra carga cultural. Sentei-me para tomar o café-da-manhã diante da ponte e quase que naturalmente a realidade me brindou com a metáfora — um rio a mais.

Trata-se de uma canção do Alan Parsons Project:
​Don't look back 'cause there's one more river.
Don't turn your back, you got one more river to cross.
No more fightin', no more dyin'.
​No more cheatin', no more lyin'.
​

​Ali estava o sentido da vida que precisava naquele momento, sem nenhum grande salto espiritual. Em vez de optar por um sanduíche tradicional, escolhi um de queijo de cabra com preiselbeeren (uma parente de amora).
​
​Depois, atravessei o rio.
​
Ponte da Liberdade Budapeste
Ponte da Liberdade, de Peste a Buda.


​A bucareste e de volta

Curioso que terminei de ler O Mito de Sísifo no trem de Budapeste a Bucareste, após minha própria epifania existencial. Já havia lido a primeira parte do livro, na qual Albert Camus habilmente demonstra como a ciência, a religião e a filosofia denotam nosso autoengano ao pretender encontrar certo sentido no mundo que, na verdade, não nos está disponível. 
​
​Embora ainda historicamente relevante, a praxis proposta por Camus na segunda parte do livro beira o pueril. Mais claramente: são um tanto bobas e forçadas as sugestões sobre como uma pessoa deveria conduzir a vida ao reconhecer o absurdo do mundo. Após tanto criticar os saltos argumentativos dos outros, pratica ele próprio uns ornamentais ao concluir que, diante do absurdo, a quantidade de experiências vale mais que a qualidade — e o que significaria tal quantidade.
Imagem

​Que seja. Passar horas sozinho num quarto frio em movimento sem sinal de celular foi suficientemente precioso.
Trem a Bucareste
Vista do quarto e vizinhos sempre mutáveis, trem de Budapeste a Bucareste.
​
​Apesar de ficar uma semana em Bucareste, quase todo o tempo foi tomado por um treinamento. No último sábado, aproveitei o relaxante parque principal da cidade e mais alguns museus.
Bucareste
Com algum herói romeno de turbante que não me dei o trabalho de verificar, Bucareste.
Parque Herăstrău - Bucareste
Parque Herăstrău, Bucareste.

​​Além de bons filmes no avião (os marcantes Denial e Animais Noturnos, mais a recuperação do atraso Marvel com Capitão América – Guerra Civil), o que definiu meu retorno a Quito foi um sono que durou dias. 
​
​De qualquer forma, voltei acompanhado de uma nova certeza de vida. Das confortáveis, a mais realista que encontrei até hoje: há ainda um rio mais a atravessar. 
0 Comments

PACHAMAMA!

10/28/2017

2 Comments

 
Tendo sofrido novo baque emocional pessoal, fiz aquilo que se faz tanto para comemorar quanto para esquecer. Isso mesmo: assistir a um filme e planejar uma viagem. 

O filme foi Mãe!, que me impactou demasiadamente. A obra, de enredo confuso porém de execução primorosa, nos leva a entrar em contato com camadas profundas da existência, muito abaixo das preocupações com trabalho, quilos extras ou tretas online. O estado de natureza, os instintos básicos de relacionamento, ninho, prole, em confronto com as primeiras camadas de civilização -- a moral, a ética e a etiqueta, as angústias sociais. 

Licancabur
Licancabur, Chile
A viagem foi por algumas paisagens vulcânicas do Equador. Novos amigos para meu vulcão de estimação, o Licancabur, de San Pedro do Atacama.

Nessa viagem anterior, por Chile e Bolívia, tive contato com a cultura da Pachamama. A mãe natureza ainda venerada e presenteada com oferendas pelo povo andino.

"Sob as cidades, existe um coração feito de terra / Mas os humanos não dão amor nenhum" -- cantou a banda América sobre o deserto.

De fato, é muito difícil viajar por terrenos tão livres de seres humanos e não aumentar a veneração pela natureza. Quando estamos num parque, não consideramos as formigas as donas dali, nem os seres mais importantes. São apenas formigas.

Nós também somos apenas parte do composto orgânico que se anexa à casca desse coração de terra. 
Já os vulcões são as entidades que nos relembram que há algo amedrontador sob nossos pés. O sangue da Pachamama, que pulsa independentemente da nossa existência e, principalmente, de nossas ansiedades civilizatórias. Você sabe que vai morrer, mas só quer morrer depois de deixar um legado ao mundo? Que legado? Que mundo? O que a natureza pensa disso quando decide cuspir sangue por seus poros?
​
Quilotoa
Quilotoa, Equador
Às vezes vulcões colapsam e se transformam em belíssimas caldeiras inundadas. Seguem impressionando por sua majestade, porém de forma mais acolhedora. O que esquecemos é que todas as belas paisagens que nos servem de lar são consequência de catástrofes inconcebíveis, começando pelo dia em que uma pedra flamejante se destacou de uma pedra maior e voou pelo espaço. 

Dadas as devidas proporções, Quilotoa me lembrou Santorini, a ilha paradisíaca resultado de uma erupção que enterrou civilizações, possivelmente dando origem à lenda de Atlântida. 
Acrotíri
Afresco de Acrotíri
Santorini
Santorini, Grécia (resultado da erupção do vulcão Tera)

​Difícil arte esta de aceitar as tolas vontades de nosso estado civilizatório e ao mesmo tempo a submissão à natureza. Não apenas a sujeição à natureza-rocha, mas a nossa própria natureza interior.

No caminho para Quilotoa, duas crianças viajavam com um cachorrinho, seus pais nos bancos da frente. Tratavam o cachorro com carinho. Autonomia e afeto, pensei. A razão de meu encanto por filmes como "Meu Vizinho Totoro". Desejos cujo equilíbrio é tão difícil, mas que podem nos guiar adiante. 

Autonomia e Afeto
Autonomia e Afeto

​Concluo com minha visita ao Cotopaxi, o vulcão que dá nome à região. 
​
Imagem

​Pouco depois da viagem assisti a outro filme que, surpreendentemente, ofereceu respostas bem interessantes à angústia de existir com ansiedades inventadas da civilização em cima de nossos impulsos naturais. ​
​
Imagem
Cotopaxi, Equador. Chegada ao refúgio.
Imagem
Cotopaxi, Equador. Minha primeira neve.

​​O filme foi o "Blade Runner 2049". A resposta: sentir.
2 Comments
<<Previous

    Histórico

    Setembro 2018
    Maio 2018
    Março 2018
    Fevereiro 2018
    Dezembro 2017
    Outubro 2017

    RASTROS

    Todos
    Áustria
    Brasil
    Chile
    Equador
    EUA
    Grécia
    Hungria
    Minas Gerais
    Rio De Janeiro
    Romênia
    Turquia

    Sobre a página

    Um espaço pessoal para compartilhar, sem compromissos, paixões por passeios e pela escrita. 

    Sobre Mim

    Imagem
    Rodrigo Bahia, carioca que alterna carreira jurídica mundo afora com os prazeres e descobertas da filosofia e da literatura.

    Feed RSS

Powered by Create your own unique website with customizable templates.
  • Inicial
  • Escritos
  • Contato