Decidi fazer um aparte na rotina para escrever uma apologia apaixonada ao filme "A Forma da Água", que assisti no último domingo. Precisa de alguma defesa um filme que ganhou o prêmio mais reconhecido no cinema? Depois de ler ou escutar o quarto ou quinto amigo comentando que não impressionou, entendo que sim. Não por querer bradar “ vocês não entenderam, deixa eu explicar!”. Nada disso. Acho que todo mundo “entendeu” o filme; e se há algo ali difícil de entender, então eu mesmo deixei escapar. O que quero é compartilhar minhas reflexões sobre a importância dos elementos evidentes, chamar a atenção para as belezas da luz da vela, ainda que todos já saibam como ela é. Antes, alguns alertas:
Introdução: fantasias compensatórias. Houve um tempo que inventávamos deuses curiosamente parecidos com nossos pais. A deusa que nutre, o deus que castiga. (Sim, estou começando no início da “História” – eu avisei que seria longo.) Bom, nesses tempos, não nos perguntávamos “por que” estávamos produzindo essas fantasias. Elas fluíam como compensação inconsciente de nossos medos e desejos, tão naturalmente que há quem defenda a existência de Deus com base na onipresença de entes fantásticos no imaginário de diferentes povos.
Voltemos ao reino da não abstração, da compensação inconsciente da fantasia. No século XVII foi publicada a história, que já circulava na tradição oral, da menina escravizada pela madrasta, que dormia às cinzas, mas que tem a oportunidade de participar de um baile esplendoroso, dançar com o príncipe e, depois de ter a nobreza reconhecida em seus pés, casar-se com ele. Detalhe: Cinderela tem milhares de variações através dos tempos e das regiões, uma delas na Grécia em 7 a.C. Cinema O cinema nasceu ao lado das fantasias - e suas inevitáveis compensações. Analisado friamente, o primeiro grande longa-metragem de animação da história nos contou sobre uma menina que consegue um namorado nobre apesar das restrições da mãe (madrasta) que se enche de inveja depois que a menina cresceu e se tornou mais sexualmente atrativa do que ela. Sete anões são o elemento mágico ansiado para ajudar a sonhadora a vencer sua impotência, tal como a fada madrinha. O mesmo início do século XX conheceu ainda, nos quadrinhos, o alienígena superpoderoso que salva o planeta de todo o mal (e também protege uma bela jornalista que se encanta por ele, claro); nas revistas “pulp”, todo tipo de aventura heroica, aterrorizante ou amorosa. Estou algumas gerações adiantado para que tivesse a oportunidade de viver os tempos de assistir a King Kong no cinema, o amor impossível de uma fera adorada como um deus (opa) por uma celebrada atriz. Entretanto, obviamente, encontrei nos filmes boas doses de fantasia para compensar desejos do mundo real. Validação, importância, realização, amor. Meus valores apareciam na tela como sendo os valores do mocinho, que através deles subjugava os bullys do mundo. Dentre elas, vale mencionar A História Sem Fim (1984). Esse filme trabalha com uma tradição já vista em Alice no País das Maravilhas (1865 – o livro), que é a autodeclaração da fantasia. Em Alice, a forma do elemento onírico é que se sobressai – ou seja, o que aparece é a maneira que a linguagem é transformada em imagens e experiências pelos sonhos (mais do que explorar “de onde vieram” essas palavras, como faria Freud 35 anos depois). Alice é desligada, imaginativa e sonha. A história é uma fantasia sonhada. Em A História Sem Fim, adicionalmente o caráter compensatório da fantasia também é declarado. O filme começa com um menino sofrendo duros golpes da realidade, até que encontra, num livro, um universo mágico passando por um perigo e a proteção desse universo por um valente herói se torna sua prioridade. Visto de longe, não é uma história fantástica em si; é uma história realista sobre o poder da fantasia. Diagese, Subjetividade, Fantasias Toda obra de ficção nos conduz a uma viagem a pelo menos três camadas de existência. Uma é nossa experiência real, ou seja, deitados no sofá, acomodados numa poltrona, comendo pipoca, escutando o som dos carros na rua. Outra é nossa experiência interior, subjetiva. Medos, anseios, emoções misturadas que o filme faz com nossa cabeça já pré-configurada por passadas experiências. E a terceira, é claro, é o universo que acontece dentro da ficção – que chamamos de diagese. Forrest Gump (1994), por exemplo, sentado num banco contando suas histórias.
Nesse filme, acompanhamos a história de um músico bitolado que comete um feminicídio típico, por sensações de impotência que o levam a uma crise psicótica de ciúmes. Mas a maneira que acompanhamos essa história é tão confusa quanto a cabeça dele – lampejos de memórias misturados com imaginação, todos contaminados por seus medos e desejos. É uma bagunça. E não acaba aí. Subitamente o filme se transforma na história de um garoto que passou por alguma noite sombria da qual não se recorda (seus pais que falam da noite misteriosa). Tirando algumas estranhezas, o menino vive bem sua vida de mecânico. Sexualmente, “apanha mais buceta que um banheiro público”, nas palavras de dois policiais que o seguem para toda parte. Ou seja, a “história transformada” é uma fantasia compensatória complexa do músico feminicida, misturando potência sexual, uma noite sombria deixada para trás, medo da polícia, externalização das ameaças... Só vendo o filme para entender a bagunça perfeitamente organizada que nos permite captar somente relances do que seria a diagese primária (o que "realmente" aconteceu), inapreensível diante de tantas camadas fantasiosas. Meu Vizinho Totoro Não sei se todos os fãs do clássico de animação japonesa Meu Vizinho Totoro (1988) se dão conta que uma das grandes belezas do filme é que ele é extremamente realista. Só que diferente de Alice ou de A História Sem Fim, as rupturas entre realidade e fantasia não são didáticas. A fantasia compensatória ocorre ali, normalmente, enquanto a trama real externa se desenrola. Onde vimos isso? Del Toro não está alheio à influência do bicho que rima com seu nome e com sua compleição – O Labirinto do Fauno (2006) joga, mais adulto, o mesmo jogo. Há algo de extremamente brilhante em Meu Vizinho Totoro, pois além de tudo a fantasia é questionada e depois reafirmada. Ao assistir o filme, ficamos sempre com essa dúvida insana: “Ah, é só uma fantasia. Ah não, é real, sim. Mas o que eu estou pensando, como um ônibus-gato pode ser real? Ah, mas é.” Como nos filmes de milagre de Natal, sabemos que quando a criança crescer, a fantasia, que “de fato” era real, deixará de ser. A Forma da Água Chegamos. A Forma da Água tem uma trama aparentemente simples, bela por si só. Personagens usualmente considerados “fracos” na sociedade (muda-orfã, gay, negra) participam de uma aventura fantástica contra homens brancos maus e poderosos, com direito a um romance King-Kongiano da protagonista com uma criatura-deus amazônica. Somente por isso, a história já merece aplausos. Voltarei nesse ponto mais adiante. Porém há algo mais interessante aí. Temos duas sequências da rotina de Elisa que parecem desenhar para nós seu universo diagético primário (a camada “real” da história): ela cozinha ovos, se masturba na banheira, frequenta um cinema em baixo de seu apartamento graças à generosidade (superficial/paternalista) do senhorio. Tem dificuldade de se expressar não somente porque é muda, mas porque sente que o mundo à sua volta é avesso à linguagem das coisas belas. Vive mais imaginando através de gotas de chuva na janela do ônibus que no contato com as pessoas. Sem aviso, a fantasia compensatória invade a realidade diagética. Ela trabalha com limpeza, mas num laboratório ultrassecreto que abriga uma criatura saída de um filme antigo. Com a criatura, ela consegue “se expressar”. Ele vive na água, o mesmo ambiente de suas solitárias experiências sexuais, e se encanta por seus ovos cozidos. Mas não nos enganemos, porque agora vem o duplo-giro! A história, que nos é contada pelo colega dela (que poderia ser qualquer contador de histórias), é real: com o laboratório, com a criatura, com as cicatrizes de órfã abusada na infância sendo na verdade guelras. Nada no decorrer no filme nos leva a escapar da fantasia como parte do universo diagético primário (o que seria "o mundo real"). O filme é, de fato, a história da muda que salva a criatura e tem um romance com ela. Ora, todos os elementos nos levam a perceber que trata-se de uma compensação fantasiosa da dura realidade; ao mesmo tempo, nenhum elemento dá minimamente a entender que não se trata de um universo completo em si mesmo. Ou seja, ao mesmo tempo que assume sua natureza de fantasia ingenuamente compensatória, o filme reivindica a integralidade da fantasia, o espaço que originalmente ocupava o cinema na vida de tantos escapistas. Temos, então, um verdadeiro conto de fadas, perfeitamente adaptado aos nossos tempos céticos e esclarecidos: diferente de Cinderella, ele nos fornece pistas suficientes para reconhecer desde o princípio a "realidade" difícil que lhe dá origem. Porém, estruturado suficientemente como um conto de fadas para manter o espírito de fantasia integral. A cena que Elisa está sentada à mesa com a criatura e os imagina dançando é de pirar: tem um maldito monstro amazônico sentado à mesa de uma história que, fora isso, seria seriíssima e digna de compaixão; e a “fantasia” é dançar com ele? O filme parece rir conosco. Ninguém acorda num bosque no final da história. Tudo é “real”. E que tipo de conto de fadas seria esse? Inevitável evocar a Bela e a Fera. Uma moça que “não consegue se comunicar” com seus concidadãos e encontra uma fera nobre que lhe fornece esse alento, ao enfrentar um homem cheio de si, símbolo da impermeabilidade mental. A Bela e a Fera dançam, para que não transem e traumatizem sua audiência mirim; a criatura e Elisa transam (no banheiro das fantasias masturbatórias, diga-se de passagem), e a dança é a fantasia que encobre a relação. Tudo em A Forma da Água é mais cético, mais declarado, esclarecido – sem, contudo, virar um filme cabeça do David Lynch; permanecendo, impecavelmente, um conto de fadas. Aqui entram os méritos da direção. Como trabalhar tantos elementos misturados com essa coesão? Como colocar uma porta de banheiro se abrindo, a água escorrendo porque uma mulher estava amando uma criatura marinha lá dentro, totalmente submersa, e tudo fazer sentido na narrativa aventureira que nos está sendo transmitida? A “Bela” Elisa, em A Forma da Água, nos comove mais que a francesa brilhantezinha da Disney. No nosso jogo de poder, Elisa provavelmente não lerá “A Força do Pensamento Positivo” ou galgará cargos. Está condenada à sua vivência “menor” (para os que pensam como o vilão), assim como seu colega. Pessoas de alma sensível, artística, que frequentam o mundo como estrangeiros e encontram seu lar nos filmes, livros e videogames.
A Forma da Água oferece o mesmo consolo dos filmes que Elisa assistia em baixo de sua casa. Uma aventura impossível com jogos de espionagem, um romance com uma criatura que realmente a entende por não ter se vestido com jogos de hipocrisia. A diferença é que o consolo vem costurado na realidade consolada – vivemos num mundo racista, opressor, sob um sistema insano que distribui recursos desproporcionalmente para pessoas que sabem falar a língua mecânica do “eu entrego”. Assim como os filmes de Natal nos alertam sobre a morte da “criança interior”, A Forma da Água é um filme sério e triste sobre a “morte” inevitável dos sensíveis em tempos de odes imbecilizadas ao individualismo e à prosperidade para os “fortes”. Ao mesmo tempo, oferece um resgate da fantasia para esses mesmos sensíveis que vinham empedernindo através dos anos. Quando as cicatrizes viram guelras, inevitável sorrir. Principalmente por dentro.
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