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Galápagos, Subjetividade, Lynch

2/17/2018

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Se tento enxergar longe, é por escalar, vagarosamente, ombros de gigantes. 
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Darwin Sán Cristóbal
Busto de Charles Darwin, Porto Baquerizo Moreno, São Cristóvão, Galápagos
​Nesse breve lapso de existir, já tive a oportunidade de cruzar as pedras em que Sócrates, recostado, enchia o saco dos atenienses sobre suas (in)certezas, e trilhar os passos em que seu pupilo inspirado percebeu a absoluta subjetividade do que cremos verdade. Flanei à beira do rio que acolheu Descartes enquanto tentava encontrar filetes de certeza que pudessem embasar a realidade objetiva. Vasculhei a casa em que o mago de Viena investigou os mecanismos do desejo que distorcem percepções e ações dada nossa natureza animal.

​Pera -- natureza animal?
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Antes, certo senhor sistematizou a descoberta que provavelmente ainda é a mais importante na lógica da realidade. Arrependido por não ter tocado ainda seus diários de viagem, mas contente por ter ao menos lido mais da metade do "Origem..." e umas tantas páginas do "Descendência...", estive onde Darwin perdeu as botas.
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Praia Escondida, Santa Cruz, Galápagos
Praia Escondida, Santa Cruz, Galápagos
Ilhote As Tintureiras, Galápagos
Ilhote As Tintureiras, Galápagos
 
​​Ele ficou apenas pouco mais de um mês em Galápagos. Mas ao coletar e observar diferentes espécies de aves entre as ilhas do arquipélago, especulou que elas migravam entre as ilhas, porém só sobreviviam em cada ilha aqueles indivíduos com os traços melhor adaptados. Assim como o homem “forçava” a prole de melhores cavalos ao reproduzir somente aqueles com os traços mais desejáveis, a natureza “forçava” a permanência de indivíduos melhor adaptados à complexidade do ambiente – e essa permanência desenvolvia as diferentes espécies.
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Galapagos Mockinbird
Acredito que seja um "mockingbird" de Galápagos, uma das primeiras espécies cuja variação chamou a atenção de Darwin. Só bati a foto porque ele fazia um barulhão.

​A lógica demoliu séculos de especulação filosófica. Nas palavras do gênio: 
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"​Todos estes efeitos, como veremos de maneira mais completa no capítulo seguinte, derivam inevitavelmente da luta pela vida. Devido a esta luta pela vida, qualquer variação, por mais sutil e independente da causa da qual provenha, se for em qualquer medida benéfica a um indivíduo de qualquer espécie, nas suas relações infinitamente complexas com outros seres orgânicos e com a natureza externa, tenderá à preservação daquele indivíduo, e geralmente será herdada por sua prole. Os descendentes terão também melhores chances de sobrevivência, pois, dos muitos indivíduos de uma espécie que nascem periodicamente, apenas um pequeno número pode sobreviver. Nomeei este princípio, em virtude do qual cada sutil variação, se útil, é preservada, com o termo Seleção Natural, para demarcar sua relação com a que o poder do homem de selecionar. Vimos que o homem, por seleção, pode certamente produzir grandes resultados, e pode adaptar seres orgânicos a seus próprios usos, através da acumulação de leves porém úteis variações, dadas a ele pelas mãos da Natureza. Mas a Seleção Natural, como veremos adiante, é um poder incessantemente pronto para ação, e tão imensuravelmente superior aos débeis esforços do homem como as obras da Natureza estão para as da Arte."
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Sobre a Origem da Subjetividade por meio de Seleção Natural
  
​​Muito mais que descobrir que espécies descendem umas das outras, Darwin explicou o processo pelo qual isso ocorre. Talvez nem o próprio naturalista tivesse ideia do impacto de sua sistematização, nas ciências que lhe seguiriam. Do tamanho dos rombos que ele deixou nas muralhas entre natureza e cultura.
Túnel de Lava, Santa Cruz, Galápagos
Túnel de Lava, Santa Cruz, Galápagos
O fato de enxergarmos somente as sombras da caverna de Platão, subitamente, pôde ser entendido como um traço adaptativo, tal como as penas de uma galinha. As fantasias que, segundo os caminhos abertos por Freud, possibilitaram que nos puséssemos de pé e tocássemos flautas, foram variações fundamentais para o desenvolvimento e permanência dessa nova espécie esquisitíssima, a única que compreende que vai morrer assim como todos os que ama, a única capaz de refletir sobre a destrutividade inerente a seus instintos de agredir, devorar e copular.
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Somente vestindo fantasias podemos acender velas e desejar muitos anos de vida a quem amamos; podemos subjugar outros de nossa espécie em esportes ou jogos de poder profissional; compramos ingredientes orgânicos e uma garrafa de vinho para fazer um risoto; escrevemos poesias sobre a tal beleza do tal amor.
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Seleção Sexual, Estética e Desejo
 
Mas a teoria da seleção natural teve que enfrentar um paradoxo desde seus primórdios. Se a luta (inconsciente) pela sobrevivência rege os traços preservados de cada indivíduo, por que o pavão (como exemplo) evoluiu para se tornar tão gracioso, tornando-o uma presa tão mais fácil a seus predadores? Levando o problema para a estética humana, por que a protagonista de Cisne Negro... se comporta como a protagonista de Cisne Negro?
Cisne Negro
Espécie que prospera aparentemente fora da lógica da seleção natural.
Uma hipótese interessante é a de que apenas os primeiros traços sutis de alguma forma significavam melhor adaptabilidade. Um pavão com uma cauda um pouco maior ou um pouco mais colorida era selecionado porque gerava prole com mais saúde física, por exemplo. Porém, não somente os genes da cauda são passados adiante, mas também os genes de atração pela cauda. Os genes de atração garantiam que as proles selecionariam sexualmente os pares mais saudáveis. Só que uma vez que ambos conjuntos de genes são passados às proles, o sistema de atração e perpetuação “roda sozinho”, ou seja, não precisa mais estar vinculado à sobrevivência dos indivíduos em si. Logicamente, também não podem impedir a sobrevivência, e por isso não prosperam pavões com cauda tão grande que não possam caminhar. Dadas as mínimas condições de sobrevivência, os genes de atração e exageros de atratividade (que podemos passar a chamar de "estéticos") se ajudam mutuamente a se proliferar.
 
Patola-de-pés-azuis, Santa Cruz, Galápagos
Patola-de-pés-azuis, Santa Cruz, Galápagos
Sapatos Azuis
Essa foto não é de Galápagos, os sapatos azuis são só para gerar reflexão mesmo.
 
As variações que passamos adiante (genes) não definem completamente nosso comportamento, mas nossas ações estão confinadas aos limites das capacidades de nossos genes. É possível manobrar, porém desde que dentro da estrada que o gene já definiu. Por essa razão uma vida dedicada à beleza, como por exemplo a de Van Gogh, que não ajudou nem na sua sobrevivência nem na geração de prole, ainda assim pode ser explicada no contexto da seleção natural, pois a dedicação à estética é um dos caminhos abertos por nossos genes de atração.
 
​Esses sistemas que rodam independentemente de ganhos para a sobrevivência são cruciais para entender a humanidade. Definem grande parte de nossa existência e se estendem para a composição complexa daquilo que chamamos de cultura. Por essa razão nossos cérebros evoluíram muito além do requerido para vencermos os neandertais, aprendemos a valorizar comportamentos autodestrutivos como o de muitos santos, e seguimos evoluindo culturalmente na direção... Na direção...
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Retorno à fantasia
  
​Fico tentado a falar de como a percepção de que a lógica fria da natureza não quer nada conosco pode levar a atitudes opostas como o existencialismo tanto-faz ou o desejo de colonizar outros planetas, este último como se a sobrevivência eterna de nossa espécie (ou das que descenderão de nós) fosse um chamado cósmico, uma vocação.

Só que a ideia aqui é falar de Galápagos e subjetividade, e já me perdi bastante. Voltemos.

David Lynch é um cineasta Hollywoodiano, um tanto odiado por sua adaptação de Duna. Bem, eu não li o livro, então até que gostei. Ele é famoso pelo brilhante Veludo Azul, que já traz alguns elementos que ele exagerou em outros filmes como Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos. O que vemos na tela, muito mais que a tentativa de reprodução filmada de uma história observável na vida real, são memórias contaminadas por fantasias; olhares sobre o mundo contaminados por fantasias; puro entretenimento mental de fantasias.
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Veludo Azul
Veludo Azul, 1986
Cidade dos Sonhos
Cidade dos Sonhos, 2001
 
​Tolices, se poderia pensar. Mas não é a nossa experiência humana permeada por esse tipo de tolice? Não tomamos banho às vezes imaginando uma conversa que jamais acontecerá? Não brincamos de adulterar as memórias que temos de certos eventos, colocando imagens e sensações sobre “o que aconteceria se eu tivesse feito isso ou aquilo”? Não planejamos festas em parte com listas e em parte com ilusões sobre como ela se desenrolará?
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Uma viagem a Galápagos nunca é somente uma viagem. O que nos move adiante e nos faz juntar dinheiro para uma viagem, um carro ou uma casa de campo são fantasias confusas sobre o que o futuro pode ser e o que pode significar para nós, assim como nos apegamos seletivamente a elementos do passado que ajudam a construir a narrativa de nossa vida. ​
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Porto Ayora, Santa Cruz, Galápagos
Porto Ayora, Santa Cruz, Galápagos
  
​​Para um exemplo mais prático: vejo muito pela internet a frase do Robin Williams:
Eu pensava que a pior coisa na vida era acabar sozinho. Não é. A pior coisa na vida é acabar com pessoas que fazem você se sentir sozinho.
  
​Não sei se quem a reproduz percebe que essa é uma narrativa pessoal e subjetiva de um homem doente – que terminou por tirar a própria vida.

E outros muitos artistas famosos perdem o gosto pela vida quando a fantasia confusa sobre um futuro desejável se torna um dia-a-dia inescapável. A intoxicação se torna a melhor – ou única – saída percebida para seguir existindo. É perigosa a combinação entre narrativas negativas sobre o passado e ausência de novas fantasias para o futuro.
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Da mesma forma, também entretemos narrativas e fantasias coletivas. A realidade da espécie humana é fundamentada em ficções adaptativas como família, propriedade, ética, utopias, etc.
​  
Azuis
​
Eu cultivo um duplo interesse nessas questões de subjetividade: primeiro, estudar e trabalhar para transformar certas narrativas coletivas de nossos sistemas políticos e econômicos. Não tenho especial preocupação com a sobrevivência da espécie humana, mas sim que os indivíduos existentes ou por existir estejam menos constritos por forças indesejadas.

Em segundo lugar, contemplar minhas próprias fantasias individuais ou aprender com fantasias alheias. Há quem goste de viver as fantasias sem observá-las, há quem goste de esmiuçá-las; a grande ilusão é pensar que se pode viver sem elas.

Deixei Galápagos com um delineamento de um conto Lynchiano, título provisório “Azuis”. No que eu conheci de Lynch, o escape para a fantasia tem como gatilho eventos supertraumáticos; minha ideia é trabalhar as fantasias em situações mais prosaicas.
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Claro que, me conhecendo, escreverei tão rápido quanto as tartarugas gigantes atrás de seu café da manhã...
 
​Se gostar do resultado, no mínimo ganhei um novo hobby de buscar elementos oníricos nas minhas viagens. Para que mesmo? Ah, sim, o sistema roda sozinho.   
2 Comments
Kevin Mcdonald link
11/15/2022 11:07:41 pm

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Plastering Contractor New Jersey link
12/13/2022 11:57:54 pm

Thankss for a great read

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    Rodrigo Bahia, carioca que alterna carreira jurídica mundo afora com os prazeres e descobertas da filosofia e da literatura.

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