Você com certeza já ouviu falar de haicai, estilo poético tradicional japonês que lembra uma pintura em palavras, da qual uma ideia emerge quase à mão, porém permanece fugaz. Noite. Um silvo no ar, Ninguém na estação. E o trem passa sem parar. (Guilherme de Almeida) O estilo tem sua tradição e história peculiar, praticamente inacessível para quem não fala japonês e entende a cultura do país. O próprio nome sofreu transformações históricas e hoje é transliterado principalmente como haiku. Não importa. Esse texto não é sobre haicais, e sim sobre a inspiração que se pode extrair deles. Quem já se propôs a criar sabe que muitas vezes a obrigação é uma asa. Ao decidir produzir "haicais" fajutos em trilhas e caminhadas, inspirados somente na brevidade e imageticidade do estilo japonês, me vi observando melhor algumas imagens mentais tais como elas vinham. Menos raciocínio, mais apreciação. O resultado de alguns desses exercícios – demasiado pessoais e um tanto sem graça sem as explicações – apresento abaixo. Meu intuito ao divulgá-los não é para aproveitamento na leitura, e sim para incentivar o mesmo exercício de observação interior. Por que não lançar mão de algumas palavras para "fotografar" um próximo passeio?
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Alain de Botton, assim como outros palestrantes da plataforma TED, é um comunicador de ideias interessantes acusado pela academia de superficialidade. Não estão errados na crítica, mas talvez no foco. Você não abana a cabeça porque o vendedor de cachorro-quente da esquina não se aprofundou na Alemanha sobre preparação de salsichas, e o fato de Alain de Botton pinçar da filosofia e das artes apenas dicas práticas sobre vivência e convivência não as tornam menos valiosas. Uma dessas dicas, exposta no livro "Desejo de Status", é a de visitar ruínas. Apreciei-a demasiado, não por me incitar um objetivo novo, mas por ressaltar um prazer específico que eu já possuía sem que notasse o tamanho de sua importância para minha visão de mundo. Por que visitar ruínas? Para que o Lulu Santos metonímico possa ser tocado, cheirado e observado em 3D como La Bête: tudo passa, tudo sempre passará. Para inspirar fundo e sentir a morte e a destruição em seus efeitos redentores. Elas também enxurraram embora preocupações de sucesso financeiro ou profissional, orgulhos e vaidades. Tudo acaba. As artes narrativas nos ajudam a apreciar fetichismos, ou seja, a extrair emoções subjetivas vinculadas a objetos ou locais com os quais pessoas (reais ou imaginárias) conviveram. Um tanto em função disso, em contato com ruínas, além da contemplação da impermanência, inevitavelmente imagino histórias. Não apenas a história conjunta de um povo, mas sutis experiências individuais de quem viveu ali. Um grande amor, uma grande decepção; desejos de liberdade, de realizações. Podem ser ancestrais, podem ser recentes. E, com os músculos da imaginação em dia, podem estar bem preservadas ou quase em pó. Estar ali é suficiente para ativar o sentimento. Algo ali foi muito importante, e acabou. Tudo o que nos preocupa passa. Tudo o que é belo passa. Tudo. Atualmente morando no Equador, tive a ideia de montar esse espaço online para que o compartilhamento de algumas ideias me incentive a viajar e escrever mais. Como essa é a primeira publicação, não sei ainda como vai ser a dinâmica. A princípio buscarei ser breve nos relatos e livre nas ponderações. Decidi começar por uma viagem de 2016: Itacolomi e Lavras Novas. ItacolomiOuro Preto é conhecida por conter uma variedade de atrações culturais. Quando pesquisei um lugar para acampar por uns dias e percorrer alguma travessia, não fazia ideia da existência do Parque do Itacolomi, muito menos do inesperadamente bucólico vilarejo vizinho de Lavras Novas. O Pico do Itacolomi marca, um tanto fálico, a paisagem de Ouro Preto. Mas as paisagens que o percurso até seu topo oferece são ainda mais inspiradoras. Havia acampado no parque no dia anterior (onde terminei a leitura que me havia imposto como missão: Moby Dick), então pude subir cedo e quase não encontrar ninguém pelo caminho.
No trajeto, a combinação de silêncio, rochas e paisagens abertas sempre ajuda a me situar diante da redentora e libertadora insignificância humana. Aos pés, escarpa verde e macia Névoa acolhe, por cima e Jano, petrificado, silencia: És escarpa, és neblina Lavras NovasSabiamente escolhi uma segunda-feira para fazer a travessia da Estrada Real que liga Ouro Preto a Lavras Novas, de aproximadamente 5 horas de caminhada. Total de pessoas encontradas pelo caminho: 0. Bem no início cheguei a ouvir um pouco de Depeche Mode. Depois, só me acompanharam o silêncio, a observação e o peso do mochilão nas costas (minha barraca era de quatro lugares — definitivamente não recomendo para uma viagem solo...!).
No início da viagem, no ônibus a caminho de Belo Horizonte, idealizei e rascunhei o ensaio Paisagens Interiores (inspirado na definição que Maria Popova faz de "alma", reproduzida mais abaixo). Paisagens InterioresVejo uma paisagem. Uma lagoa, uma gaivota. Ela se torna, dentro de mim, inúmeras. Convoca paisagens precedentes, outros lagos, outras gaivotas, desenhadas, pintadas, repetidas em fotografias sucessivas numa sala de cinema, em outros climas e cidades, sob tempestades, sob sóis. E inflama, ainda, fantasias de paisagens que ainda virão — lagos, voos, vivências e experiências que temo, que desejo, ou ambos. Ao viajar, o mundo fica grande e pequeno. Grande porque as luzes na estrada mostram que há vida em todo lugar, em muitos lugares. Pequeno porque estes são acessíveis, são finitos e se pode estimar sua finitude. As paisagens interiores, por sua vez, jamais diminuem. São infinitas em cada instante da existência; uma paisagem infinita se esvai e dá lugar a outra com sua própria infinitude, continuamente, instante a instante.
Tomemos um epitáfio, um discurso de funeral ou mesmo um balanço da vida feito em autobiografia. Não representará uma partícula daquela vida somente porque será uma tentativa limitada de traduzir em palavras o que a pessoa viveu — mas também porque, necessariamente, negligenciará essas paisagens interiores de cada momento. A morte, em si (a qual não devemos evitar como um tabu, pois arriscamos sempre, ao viver e ao conviver), será o instante mais patético e dispensável na revisão de nossa trajetória. Virginia Woolf inchada, lívida, sufocando no Rio Ouse, ou os instantes que mirou o horizonte e se imiscuiu da alma de Lily Briscoe enquanto escrevia Ao Farol? Às vezes conseguimos mostrar para os outros um pouco do universo que nos habita — a isso chamamos arte. Mas também a arte é um micróbio desse universo, pois quase nada é posto para fora. Um balanço coerente da vida de uma pessoa deveria considerar — ainda que admitindo desconhecer sua extensão — o universo inteiro. Não deveríamos menosprezar as imagens fantásticas que habitaram um breve instante a mente de uma criança, ou até mesmo as fantasias confusas de um bebê (que relembra a maravilhosa letra de Spellbound, do Siouxsie and the Banshees: “seguindo os passos da dança de uma boneca de pano, estamos em transe”).
Faço um balanço prematuro da vida, então: se me deliciei com milhões de paisagens e aventuras interiores, tive uma vida plena. O que conseguirei transmitir — como arte, em família ou na comunidade — só o imponderável dirá. Meu controle sobre manifestações é limitado, depende de interações externas — não há palavras sem olhos ou ouvidos. O mundo interno — neste vivi de tudo. E finalizo com uma ponderação a meu ver perfeita sobre a maldição que compartilhamos, de jamais visitar mais que a beira das paisagens interiores das pessoas com quem convivemos:
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Setembro 2018
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Sobre a páginaUm espaço pessoal para compartilhar, sem compromissos, paixões por passeios e pela escrita.
Sobre MimRodrigo Bahia, carioca que alterna carreira jurídica mundo afora com os prazeres e descobertas da filosofia e da literatura.
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