Minha primeira vez nos famosos Estados Unidos trouxe algumas boas surpresas. O trajeto foi em companhia de um grande amigo dos tempos de colégio, desde Ashland, em Oregon, onde ele apresentou um de seus trabalhos numa conferência, a São Francisco, na California. Não vou tratar dos variados insights que a viagem me acendeu. Dedicarei esse texto a um espírito de tietagem que me foi inevitável com relação a dois grandes autores da língua inglesa, que me fizeram até mesmo compreender, em sentimento, as manifestações de apreço irracional a desconhecidos (ah, então é isso que os fãs sentem!). Um deles, quero, sobretudo, defender, como símbolo de uma apologia mais ampla da literatura. O outro quero elogiar sem medida, por sua importância em três momentos formativos da minha personalidade. 1. O russo. Apaixonei-me pela pequena Ashland por variadas razões. Uma cidadezinha típica dos Estados Unidos, recheada de igrejas protestantes e de um senso de comunidade contagiante, que acolhe um festival de Shakespeare quase permanentemente. Comprovei a qualidade propagandeada das peças assistindo a Otelo - fascinante poder apreciá-la em inglês. A vocação para a arte se nota em galerias de pinturas impressionantes (achei obras de melhor qualidade e originalidade do que nas galerias de São Francisco), lojas de antiguidades, livrarias. Foi uma enorme surpresa quando meu amigo mencionou o nome do autor em sua apresentação na conferência e ficamos sabendo que Vladimir Nabokov completou sua obra mais famosa, Lolita, ali mesmo, em Ashland. Admiro extremadamente o estilo e a composição de Lolita, para mim um quebra-cabeças inteligente e saboroso tal como nosso Dom Casmurro, de Machado de Assis. Sei que a obra segue polêmica mesmo em dias atuais, então vou usar esse espaço somente para fazer uma apologia (que deveria ser desnecessária) a Lolita e, por tabela, à literatura em geral. Outro dia vi uma publicação que me deixou um tanto pasmo, porque dentro de uma lista de “sintomas” de desentendimento sobre a sexualidade, um era considerar Lolita "cult". Tive que caçar para colocar aqui: Vamos lá, Lolita não está no topo de meus livros favoritos. Entretanto, reconheço e admiro seu brilhantismo, tanto no fluxo da história quanto na qualidade do texto em si. Se fez mais sucesso devido à polêmica de seu tema do que pela qualidade, bem, infelizmente essa é uma realidade presente em todas as artes. Mais adiante voltarei a falar sobre a diferença entre conteúdo e apreciação. Caso não houvessem roubado a Mona Lisa em 1911, ela possivelmente seria apenas mais uma obra renascentista escondida no Louvre entre tantas outras superiores em técnica e beleza. O que me assusta, no limite da desesperança, é a falta de entendimento literário implícito na tal publicação. Infelizmente, uma ignorância que vejo até mesmo em grupos de discussões relacionados com disciplinas sociais e que não me surpreenderia encontrar até em faculdades de letras. Tudo começa com estudos bem-intencionados que ressaltam o óbvio: obras culturais são produtos de seu autor em seu tempo – encontramos machismo por autores em seu tempo machistas, racismo por autores em seu tempo racistas, etc. O problema é quando, diante dessa constatação, entendem ou querem entender que há obras “do bem” e “obras do mal”. A Ilíada e a Odisseia seriam obras demoníacas ante os asseclas desse culto que se interessassem em conhecê-las, e nem O Hobbit e O Senhor dos Anéis escapariam dado seu racismo imanente. O assombro para mim é muito maior quando o status de “do mal” é atribuído a uma obra exclusivamente por seu tema. Qualquer pessoa alfabetizada que leu Lolita sabe que é a história de, nas palavras de Nabokov, um “patife vaidoso e cruel”. Um sociopata que leva sua esposa ao desespero e à morte, e se aproveita emocionalmente e sexualmente do desamparo de uma criança, danificando intensamente sua vida.
Antes de tudo, a literatura nos permite contatos. Com ideias que gostamos, com ideias que não gostamos, com mundos diferentes, com cabeças diferentes. Apreciaremos alguns desses mundos, nos aterrorizaremos com outros; encontraremos heróis, nos decepcionaremos com eles, veremos pessoas cometendo perversidades e acompanharemos os processos de pensamento que as levaram a cometê-las – independentemente se calculamos, depois, se teríamos agido diferente ou não. O julgamento é opcional e exterior à obra. Embora os contos de fadas possam nos trazer o julgamento mastigado (“era uma vez uma linda e bondosa princesa”), a boa literatura geralmente nos deixará a nossas próprias intuições. Que julgamento fazer do recluso e calado Santiago, que exilou mulher e filho descuidados na Suíça? Que diferente não é deixar essa pergunta de lado e acompanhar os afetos desordenados do quase-padre Bentinho, em Dom Casmurro? Sem mais delongas – Lolita é um exercício literário dos mais difíceis e bem-executados, alcançado graças a uma mente apaixonada por quebra-cabeças, letras e detalhes. O livro nos embarca no relato de um narrador que desde o princípio se demonstra no mínimo arrogante, e que a cada nova página nos revela sua percepção distorcida do mundo e das relações humanas, de uma maneira poética que nos confunde. Pois é, a poesia é o mais eficiente instrumento de distorção subjetiva, e não necessariamente para fins louváveis. A obra, tão bem composta, merece a admiração (ainda que não seja a predileção) de quem quer que leve a sério os esforços literários. 2. O marinheiro São Francisco é uma das cidades mais famosas do mundo. Pelas sedes de grandes empresas de tecnologia, por suas ruas íngremes, bondes e arquitetura de bom gosto que resistem com charme às transformações do capitalismo, por sua icônica ponte vermelho-alaranjada. E, vizinha a ela, tem uma tal de Oakland. Só que para quem leu o terceiro livro que mencionarei aqui, caminhar pelas docas de Oakland tem outro sentido... Por sorte meu amigo é tão fascinado quanto eu pela obra e, ao planejar a viagem, de uma coisa tínhamos certeza: visitaríamos a estátua do Jack London nessa cidade. O primeiro marco do autor na minha vida não foi pela leitura, mas por um filme da Disney baseado em sua obra: Caninos Brancos, lançado em 1991. Eu tinha 8 anos; só lembro que fui assistir no cinema com meu pai e que saí de lá transformado. O que eu mais amava na época era fantasia, e Caninos Brancos possivelmente não teve o mesmo impacto emocional em mim que Jurassic Park, por exemplo, lançado dois anos depois. Mas havia uma diferença: em Caninos Brancos, a fantasia estava na realidade de viver, se aventurar, compreender que a natureza é amiga, inimiga e, antes de tudo, nosso espelho. Mal sabia eu que Caninos Brancos, além de me gerar uma simpatia gratuita pelo Ethan Hawke (a qual só descobri a origem porque reassisti ao trailer para escrever este texto), me prepararia para o que viria depois - o ponto de virada da minha vida adulta. Eu tinha já meus quase 20 anos, mas mantinha algumas idealizações adolescentes. Não apenas sobre funcionamento político do mundo, mas tantas outras coisas que uma mente jovem pode decidir se iludir que fica até difícil listar. Andava lendo muito, especialmente os russos. Encontrava em Tolstoi um entendimento preciso sobre a alma que procura o “bem viver” diante da morte inevitável, servindo a sua comunidade e buscando irrestritamente o amor, a energia basilar da continuidade da vida. Acreditava que eram ideais não apenas espalháveis, como inevitáveis. Por que diabos decidi comprar, numa feira de livros usados no Largo do Machado, O Chamado da Selva? (Um encontro fortuito que não consigo crer que ainda pode ocorrer ante o domínio das livrarias comerciais, mas esse é tópico para outro momento.) O fato é que o livro (também já traduzido como O Apelo da Selva, O Chamado Selvagem, O Grito da Selva, e, um pouco equivocadamente, O Chamado da Floresta) mudou minha vida. Não que eu tenha me entregado totalmente ao spencerismo embutido na obra; nunca abandonei muitos de meus ideais tolstoianos. Mas quando você não é um príncipe russo, a jornada de Buck faz muito mais sentido. Ali estava o viver em todas as suas contradições. Os jogos inevitáveis de poder, a escassez de recursos que leva à acumulação de recursos, o servilismo tão obrigatório à sobrevivência quanto o arreganhar dos dentes. O final elevou minha alma de forma quase religiosa – mas foi todo o caminho que me ensinou a enfrentar a fase adulta. Se antes havia alguma ilusão cultivada de que há destinos escritos pelas estrelas, inevitabilidades de sucesso no amor, no trabalho, na vida em sociedade, a selva me chamou para contar que nós escrevemos nossos destinos com o pulsar de nosso sangue.
Há pouco tempo, acompanhei uma polêmica: fizeram uma campanha para indicar uma escritora negra, Conceição Evaristo, para a Academia Brasileira de Letras. Levou o título o cineasta Cacá Diegues, gerando consternação e revolta para os que almejavam ver uma nova representatividade na instituição. O Martin Eden dentro de mim, olhando para o mar através de uma escotilha aberta, sorri, com certo escárnio desesperado. Conceição Evaristo. Cacá Diegues. Academia Brasileira de Letras. Cadeira Número 7. Conceitos vazios, que nada tem a ver com a vida, com a natureza, com a arte. Com o que escreveu Conceição em noites que varou a madrugada, ou com os dias mal alimentados que Cacá não podia perder uma luz natural para sua filmagem.
Entretanto, justamente ao notar que são todos vazios, se tornam também mais possíveis. Sim, é possível obter conquistas materiais e reconhecimentos sociais partindo bem atrás na linha de largada; é possível lidar com o sabor amargo dos símbolos e ficções inúteis quando toda a beleza já existia sem que se prestassem a apreciá-la. Essa talvez a grande lição que extraímos de Martin Eden. A produção está apenas marginalmente vinculada aos resultados externos; os dois se manejam separadamente. Ao resultado material e reconhecimento social, nos dedicamos pelo quanto desejamos ou precisamos, aceitando suas aleatoriedades e caprichos. Ao viver dia após dia e à produção, estes sim, podemos dedicar, independentemente, nossa alma.
3 Comments
10/6/2022 04:13:22 pm
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Setembro 2018
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Sobre MimRodrigo Bahia, carioca que alterna carreira jurídica mundo afora com os prazeres e descobertas da filosofia e da literatura.
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